Insondáveis são as armadilhas dos caminhos palmilhados por um artista no rumo do amadurecimento! Há mais ou menos duas décadas, desde quando as inclinações artístico-plásticas começaram a assumir, na preferência do pintor Guido Boletti, a condição de linguagem mais importante e conveniente, em detrimento de outras, tal a música, vem ele travando uma luta de si consigo mesmo na constante busca da depuração estilística e no esforço de filtrar o sumo e a síntese das influências tidas – e aqui me refiro, principalmente, a Klee, Kandinsky e Miró – eis que, após tantas esgrimas ao longo das referidas armadilhas, este incorrigível inventor de símbolos chega a uma fase em que, da figuração algo esotérica à superação abstrativa do próprio tema, logra obter, de maneira esplêndida, uma linguagem própria e amadurecida em sua formalização e em sua abrangência.
Esta fase revela-se à evidência no conjunto das obras reunidas nesta exposição, das quais a seguir perfilaremos algumas. Dom Quixote mais parece uma figura galáctica, que parte de uma espiral menor e ruma à outra gigantesca (as galáxias não têm mesmo a forma quase sempre espiralada?), trazendo gravada em sua armadura uma linguagem enigmaticamente cifrada, a pedir a todo o universo um pouco mais de candura e nada de violência (não é à toa que o próprio Guido tem um quadro bem anterior, que leva o título Canção pela paz, canção por nós). Tirante o cavaleiro e seu corcel de crinas incendiadas, restar-nos-á a codificação abstratizante que se refere a um sonho talvez impossível de atingir-se, por utópico. Outra não seria a mensagem do Cavalo fogueira, com a diferença de que sua função, ao invés de num espaço aleatório, se dá no aqui e agora. Avança ele céu afora, tal um pégaso sem asas, trazendo no corpo o mesmo apelo de paz e poesia cifrado, que vimos no Dom Quixote, só que a cidade à distância, dormida no profundo azul, ainda não tem discernimento suficiente para entendê-lo (falem por mim as ameaças a que a ganância dos homens está sujeitando a atmosfera e outras cositas más). A síntese universalista é tão gritante, que as espirais aqui se multiplicam em mais de duas dezenas!
Daí, passando por Levarei a música até você, Um piano, uma noite, uma cálida música e outras tão líricas e sonhadoras, como soe ser a alma deste artista, chegamos a Templo de Iara e Jovem Xamã, que se me afiguram como um trampolim, de onde pintor e imaginação estão prestes a dar o grande salto. Digo isto, porque estas duas telas me parecem verdadeiro achado, encontro, abertura para um novo universo, que ora começa a acontecer. No primeiro, a figura de Iara, cabelos ao vento, uma verdadeira máscara, e seu templo cuja cobertura mais parece uma enorme telha, são as únicas referências ainda hauridas de nossa experiência visual; o restante é uma intricada simbologia, cujas unidades espalham-se convenientemente pelo espaço, como se fossem a concretização páutica de uma divina música, que nos quer atingir, vinda do mais profundo dos tempos. Em Jovem Xamã, Guido avança um pouco mais na direção de um universo abstratizante. O jovem, algo assim como um ‘mancebo grego’, praticamente a única figura reconhecível de todo o contexto, os olhos fecha e, concentradamente, haure o aroma das flores abaixo, para, a plenos pulmões, espargi-lo em seguida por todo o universo, como uma bênção do belo.
Aí se encerra a última fase da arte de Guido Boletti, transubstanciada nestas extraordinárias pinturas, nas quais o apelo às suas experiências musicais de antes, de quando ainda se sentia apenas músico, se faz tão evidente, que sou levado a perguntar: Pintura? Música? Pintura musicada? Música pintada? Não sei. Só sei que nosso artista encontrou uma forma inaudita de ser ao mesmo tempo musicista e pintor, extraindo dessas artes, sem traição a nenhuma delas, o essencial e substancial para a construção de uma linguagem universal e divina. Do exposto, alguém talvez suporia que, para o artista, as coisas se tornaram mais simples, uma vez que encontrou uma fórmula e é só explorá-la. Mas longe de ser assim, sabemos que, onde há depuração, as armadilhas se tornam bem maiores e muito mais severas, exigindo mais do artista, porquanto suas preocupações agora vão mudar de eixo, onde tudo para si se torna novidade. E a luta continua…
Pierre Santos | Crítico, Membro da ABCA e da AICA